Todos os dias duas mães ficavam na porta da Escola Estadual José Bernardino Lindoso esperando seus filhos estudarem. Acho que os dois tinham algum tipo de autismo: era um menino e uma menina. Fui professor dos dois. Vinham e voltavam de ônibus, sob sol forte, às vezes sob fumaça. Nunca faltavam. Admirávamos a obstinação daquelas mães. Quase no final do ano elas souberam, por seus filhos, que eu sou escritor. Passaram a me notar mais quando eu passava. Me olhavam com ternura.
Certo dia, uma turma de primeiro ano e uma turma de terceiro ano do ensino médio me homenagearam na feira literária. Daí em diante muitos alunos passaram a me olhar diferente, assim como meus colegas da escola. Diziam até que eu era famoso. A partir daí veio a cobrança dos alunos: queriam ler meu livro. Aquelas duas mães também passaram a me cobrar. Queriam o livro para presentear seus filhos. Eram pessoas economicamente vulneráveis. Dias atrás me prometeram que assim que chegasse final do mês e caísse o salário, elas comprariam o livro. Esperei o evento acontecer.
Hoje, no segundo dia de dezembro de 2024, ao chegar na escola, pela manhã, uma professora, colega, se aproximou de mim e disse estar admirada com a apresentação, na feira literária, da turma do terceiro ano. A obra abordada foi Canumã: a travessia. Ela queria que eu proferisse palavras de agradecimento à turma, pois os alunos ficaram animados em saber que seu professor é um escritor. A professora demonstrou interesse em me ler. No mesmo instante saí da sala e fui ao terceiro ano conversar com a turma. Era tarde. Não havia mais ninguém. Na volta, segui até o carro, peguei dois exemplares do meu livro e os coloquei na mochila. Presenteei a professora com um exemplar autografado. Seus olhos brilharam, eu senti. Conversamos mais um pouco e depois fui anunciar as notas finais de algumas turmas.
À tarde, ao entrar na escola, aquelas duas mães estavam lá, como todos os dias. Uma delas me chamou. Queria comprar. Eu lhe presentearia. Ela não quis. Disse que fazia questão de pagar. Em sua bolsa havia uma nota de cinquenta reais, uma de dez, uma de dois reais e mais algumas moedinhas. Ela puxou logo a nota de cinquenta. Pedi a de dez. Meio constrangida, ela aceitou a proposta. Depois, enfiou a mão novamente na bolsa e tirou a nota de dois, mais as moedinhas, e me deu, orgulhosa. Concluiu dizendo que sua filha, que inclusive foi a aluna destaque da turma, estava muito ansiosa para ler aquele livro. Horas depois me veio a retrospectiva daquela aluna. No início do ano letivo, ao perguntar sobre quantos livros os alunos já haviam lido durante a vida, ela foi a única pessoa da turma que revelou já ter lido mais de dois livros. Saí da escola crendo nas palavras de sua mãe: “ela vai ler o livro em menos de uma semana”.
A conversa que tive tanto com a professora quanto com a mãe da aluna me fez pensar no Retratos da Leitura no Brasil, estudo divulgado mês passado. Segundo o relatório, nos últimos quatro anos, o número de leitores caiu. Foram 5.504 entrevistas, face a face, em 208 municípios, nos meses de maio, junho e julho de 2024: uma amostra considerável. O relatório identificou que, entre os leitores, a principal dificuldade à leitura é a falta de tempo, seguida da preferência a outras atividades, da falta de paciência para ler, do cansaço no ato da leitura, da ausência de bibliotecas por perto, entre outros motivos. A meu ver, o que há, na verdade, é a despriorização da leitura. Precisamos, com urgência, educar nossa juventude para priorizar o que é fundamental em nossa vida: a leitura, não qualquer leitura, mas uma leitura responsável.
Um achado interessante, no relatório, foi a respeito das pessoas que influenciaram no gosto pela leitura. Em primeiro lugar ficou a mãe ou responsável do sexo feminino. Em segundo lugar aparece a figura do professor ou professora. De fato, acredito que as mães têm um grande poder em influenciar seus filhos a lerem. Entretanto, quantas mães têm condições de comprar um livro? Quantas mães têm a oportunidade de conversar com o escritor? Quantas mães têm a oportunidade de participar de algum evento literário? As mesmas perguntas cabem aos seus filhos e filhas.
Aqui retomo o caso daquela mãe que fez questão de comprar Canumã. Ela é o retrato vivo do quadro de leitores do Brasil apontados no relatório. Depois de ter pagado, pegou o livro, folheou, sentiu suas páginas escorregando em seus dedos. Cheirou, em seguida ficou observando o autógrafo sendo escrito pelo escritor, ao seu lado. Estávamos sentados, um do lado do outro. Ela sorria e balançava as pernas, ansiosa para presentear sua filha. Aquela mãe mudou meu mundo. Fez aumentar meu nível de crença na formação dos nossos leitores. Continuo acreditando na virada literária. Precisamos acreditar nessa virada. O livro é uma das maiores forças que a humanidade já inventou.