por Tenório Telles*
Um dos livros que me marcaram, na minha jornada de leitor, foi “O idiota”, de Dostoiévski. Ainda ecoa uma de suas passagens célebres: “A beleza salvará o mundo”. O personagem que a pronuncia não se refere a uma qualidade física, mas subjetiva e existencial. Um ser humano revestido de beleza não é só quem cultiva as virtudes, mas também aquele que se insurge contra a crueldade do mundo, a mentira e o cinismo – e se afirma pela sua autenticidade e grandeza humana. O autor russo conhecia bem esses valores, notadamente após ter sobrevivido a um fuzilamento.
Essa reflexão me veio a propósito da obra da escritora Leyla Leong – e a registro como uma reparação contra a maldade e a injustiça em relação ao seu trabalho e, acreditem, às ilações perversas sobre a sua vida e sua condição de mulher. Ela foi vítima, na última semana, de etarismo, misoginia, fake news e outras inverdades sobre seu papel como profissional da palavra e seu posicionamento literário e político.
O cerne dessa situação diz respeito a algo que define a espécie humana: a liberdade de opinião, que é uma garantia constitucional e fundamento da Declaração Universal dos Direitos Humanos [“Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e expressão”]. Mas a liberdade não prescinde do respeito à dignidade humana.
O que a escritora Leyla Leong tem expressado, em manifestações públicas, são, em verdade, preocupações sobre o momento de transformações que vivemos com o advento das redes sociais e seus impactos sobre a cultura, a leitura e as produções culturais. Esse é um debate universal, com grandes pensadores e escritores se manifestando ora de forma crítica, ora de forma mais receptiva às mídias. Recentemente, a pesquisadora Mia Levitin, estudiosa do tema, publicou um artigo revelador sobre essa questão: “Redes sociais, degradação mental e a lenta morte da leitura”. As ponderações de Leyla são legítimas e dialogam com o ponto de vista de diversos intelectuais que veem esses novos meios de comunicação com certas ressalvas.
A detratora que a ataca distorce o que ela falou e lhe atribui afirmações inverossímeis, ao mesmo tempo em que aproveita para fazer seu julgamento condenatório contra a autora, numa atitude gratuita e de tamanha crueldade. Emite juízos injustos sobre sua obra: “textos… ‘difíceis de entender’ e fora do alcance do público”. E a acusa de escrever “obras sofisticadas”, como se isso fosse um equívoco. Fica evidente que não leu os livros de Leyla Leong – uma das narradoras mais estudadas e amadas pelas crianças e leitores em geral.
Nota-se uma nítida intenção de depreciar o trabalho de uma intelectual séria e cuidadosa, rotulando-a como uma “senhora de hábitos arcaicos e anacronicamente bocejante” (sic). O texto denota, ainda, preconceitos quanto à idade da escritora, por ser idosa, numa clara atitude etarista, além do deboche ao considerá-la como parte de um grupo de “merdejantes intelectuais”. No seu afã destrutivo, nem a língua portuguesa escapa de sua sanha vulgar, ao cometer erros crassos: “atendem à (sic) desejos do público”; “o prazer da leitura perdeu sem (sic) encanto”; “o habito (sic) da leitura”; “laboratórios de escrita rápida voltadas (sic) para o público”; “um livro me chega em mãos” (sic); “Estes escritores… escrevem porque lêem (sic)”; “essa elite pseuda-burguesa (sic)”. Isso sem falar na falta de clareza, períodos truncados e nas vírgulas usadas sem critério.
Enfim, o texto, mais que uma tentativa de desqualificar “esta senhora belle-epoquiana (sic)”, leia-se Leyla Leong, é uma agressão à “Última flor do Lácio” – como não lembrar do “velho” Bilac? Para esclarecer o leitor, “sic” significa “assim”, usado para enfatizar a forma descuidada com que a difamadora tratou a sua própria escrita. E não é demais dizer que, para transgredir, o escritor precisa conhecer sua língua. Basta lembrar Oswald de Andrade, Lima Barreto, Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski, Violeta Branca, Jorge Tufic, Simão Pessoa, Regina Melo… Não se deve confundir subversão com desleixo e erros primários.
O mais grave são as insinuações maldosas sobre a criadora de “Essa tal de natureza”, verdadeiras fake news: “porta voz (sic) da literatura elitista” [Leyla nunca expressou qualquer posicionamento elitista. Longe disso: participa de projetos de leitura em escolas públicas e atividades formativas com os professores]; outra falsidade: “jornalista aposentada faz parte dessa elite manauara que se coloca no patamar superior” [Leyla descende de uma família de professores e intelectuais que contribuíram significativamente com a cultura local – é prima da poeta Astrid Cabral e do professor Renan Freitas Pinto]; desrespeitosa, refere-se à ficcionista como parte da “elite merdejante aburguesada” [Leyla, ao longo dos anos, sempre esteve ao lado das boas causas: da cultura, dos direitos das mulheres, além de ter sido uma grande incentivadora dos artistas, como gestora cultural, uma das mais atuantes quando dirigiu o Centro Cultural Usina Chaminé].
A infâmia das infâmias é o que essa ofensora manifesta no final do seu panfleto, insinuando ser Leyla Leong uma “tiazinha que acha que a ditadura militar e o espancamento infantil seja (sic) um fato necessário e ilustre” (sic também pela impropriedade expressiva): essa afirmação é abjeta – Leyla não compactuou com a ditatura e foi sempre uma defensora da liberdade. Quanto à insinuação de conivência com o “espancamento infantil”, não há o que falar: Leyla é uma mulher que trabalha desde muito jovem, cuida da sua família e cumpre com suas obrigações como cidadã.
Esse pandemônio de insanidade e ressentimento me trouxe ao pensamento a lucidez de Umberto Eco: “Para a máquina de lama é suficiente difundir uma sombra de suspeita ou trabalhar sobre uma fofoca menor”.
Por fim, proponho algumas ponderações: a questão dessa celeuma que se quer suscitar não é entre o novo e a tradição. A tradição é importante: como prescindir de Machado de Assis, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Lygia Fagundes Telles, Drummond, Adélia Prado… Devemos aprender com o passado e buscar caminhos novos no presente. Mas o que se percebe, nesse vendaval de ofensas, mentiras e narrativas enviesadas, é uma falsa defesa do “novo” como um fim em si mesmo – como se tudo o que se publica hoje fosse surpreendente, o que não é real –, embora trabalhos de qualidade sempre estejam surgindo. Exemplo disso é a obra de autores recentes, como Grace Cordeiro, Susy Freitas, Pollyanna Furtado, Sandra Godinho, Thiago Roney, Gabriel Albuquerque, Daniel Amorim, Mayanna Velame, Eber Bentes, Ruth Jucá, Jan Santos, Werner Bentes, entre outros.
Só o tempo, o maior dos críticos, dirá o que é realmente relevante e de valor estético. A questão não é entre o novo e o velho; canônico ou não [processo que só os anos definem] – na verdade, é uma reação da arrogância de alguns escrevinhadores que se acham maiores que Dante, Camões, Clarice, Cecília Meireles, Graciliano, Luiz Bacellar… Sofrem com a dor de saber das próprias limitações criativas e vivem no autoengano e no ressentimento. Como sempre ocorreu na história literária, a mentira não vencerá, porque a ofensa e a intolerância são as armas dos fracos. E quando alguém levanta a voz é porque sabe que já perdeu.
Os bons livros prevalecerão para além das contingências do presente. A beleza, portanto, é o antídoto ao mal, à ignorância e à baixeza. Senhora da palavra, Leyla Leong tem na sua obra o seu melhor testemunho e defesa.
P.S.: A respeito dessa discussão sobre qualidade literária, o novo, a tradição e o desapreço pela língua e pela beleza, sugiro a leitura do texto “30 notas sobre a má poesia…”, do poeta Zemaria Pinto, uma das melhores e mais corajosas reflexões sobre o fenômeno literário entre nós, o compromisso com a palavra e a produção contemporânea no Amazonas: https://palavradofingidor.blogspot.com/2015/05/30-notas-sobre-ma-poesia-margem-da.html
*Artigo publicado originalmente no Portal Único https://portalunico.com/leyla-leong-senhora-da-palavra/