O livro “Folia no Seringal: ensaios sobre a literatura do Amazonas – antes, durante e depois do Clube da Madrugada” (Valer), do escritor e crítico literário Zemaria Pinto, acrescenta dados à narrativa conhecida sobre o movimento que marcou a literatura.
A obra, que já está nas livrarias virtuais e também disponível a partir deste domingo, 8, na Valer Teatro, terá lançamento oficial em Manaus em breve.
Com o novo livro, Zemaria coloca o Clube da Madrugada, movimento literário amazonense de 1954, fora do discurso que o caracteriza como uma repercussão tardia da Semana de 1922.
Zemaria, na obra, expande a compreensão do fenômeno Madrugada para um campo de ações e ideias. Confira na entrevista:
Fiz a primeira leitura do seu livro que acaba de ser impresso e me veio a ideia de fazer uma matéria com a seguinte afirmativa: Zemaria quebra a narrativa da história do Clube da Madrugada. É isso mesmo?
ZP – A intenção na verdade foi essa: verificar o que era literatura amazonense antes do Clube da Madrugada e trabalhar com o que ele tem não de importante, mas de muito importante. São os casos de Luiz Bacellar, Astrid Cabral Elson Farias e Ernesto Penafort e, também, fazer uma crítica ao Clube, que até o momento não existia. O que existe é uma crítica endógena. Ou seja: eles [os madrugadenses] criticavam a si mesmos. Então, acaba que ficava aquele jogo de compadres. E, quando alguém criticado não gostava, criava-se uma briga entre eles.
Os clubistas, por sinal, lá atrás, eram críticos do que se produzia na Academia Amazonense de Letras (AAL), mas não são poucos os “históricos” que migraram a Casa de Adriano Jorge. Quem mudou, os clubistas ou a academia?
ZP – Ah! A Academia mudou. Costumo dizer que essa confusão do Clube e da Academia começou, na verdade, quando o Manifesto madrugadense afirmou logo de cara: “Não existe literatura no Amazonas!”. Aí começava falar no totemismo absoluto dos estudiosos do francês e do grego, para mexer mesmo com a Academia, que era muito voltada para o século 19.
Aí, o presidente da Academia da época, Péricles de Moraes (1882-1956), chamou o escritor amazonense mais importante da época, o poeta Thiago de Mello (11926-2022), com 27 anos de idade, que tinha lançado dois livros bem recepcionados por Manuel Bandeira e Carlos Drummond de Andrade etc. O Thiago já fazia parte da elite da literatura brasileira. Ele tentou se esquivar, porque viu que não seria prudente se misturar àquela velharia. O pai dele, entretanto, era amigo de todo mundo da academia, disse para ele: “Você não vai fazer essa desfeita com meus amigos.” E assim, Thiago foi para a solenidade de posse de cabeça baixa – tenho uma foto em ele aparece de cabeça baixa, como se estivesse dormindo. Mas ele tomou posse numa boa e tal.
Então, para todo e qualquer efeito, houve uma quebra no relacionamento conflituoso, porque o Thiago era benquisto pelo pessoal do Clube, que eram todos da idade dele, uns um pouco mais novos outros um pouco mais novos velhos. O Thiago ficou ali, um pouco no encosto. Em 1969, catorze anos após esse episódio, a Academia elege de uma pancada: Elson Farias, primeiro; Sebastião Norões (1915-1972), depois, e em seguida Jorge Tufic (1930-2018). Aí, pronto, acabou aquela confusão.
Naquela altura, o presidente da Academia era Djalma Batista (1916-1979) que fez questão de chamar os jovens representados por esses três. Eles não tinham mais por que continuar brigando. Mas, mesmo assim, continuaram, porque o poeta L. Ruas foi rejeitado duas vezes. Tem um texto do Fábio Lucena chicoteando todo mundo. Infelizmente não guardei esse texto, naquela época não era tão fácil tirar foto ou escanear um texto. Mas Fábio Luciana fez um discurso condenando todo mundo da Academia ao fogo do inferno, porque L. Ruas havia sido rejeitado.
Luiz Bacellar não queria nem ouvir falar sobre a Academia e ninguém sabia o porquê. Certo dia alguém me falou, acho que foi o Anísio Mello (1927-2010), meu amigo: “Bacellar não quer falar sobre a Academia porque foi rejeitado uma vez e ele não gosta de lembrar disso”. Fui conversar com ele, argumentei que os tempos eram outros e assegurei que votaríamos nele. Poxa, o Bacellar entrou depois de mim, muita gente entrou depois de mim, que deveria ter entrado antes.
O Bacellar foi que foi convencido a entrar no Clube. Ele dizia: tá eu vou, mas não vou falar nada, não vou fazer discurso nem comprar black tie. A gente deu jeito pra tudo.
Sempre me questiono a respeito da persistência da narrativa do viajante. Isso acontece tanto no ofício acadêmico quanto no romance na e sobre a Amazônia. O livro também faz essa abordagem […]
ZP […] Sim. Observo a paisagem na literatura de viajantes e nativos. Trato os dois de maneira igual e observo como cada um a percebe. O nativo já está com a paisagem entranhada no seu imaginário. O viajante vai criar uma literatura imaginária. Não foi à toa que Júlio Verne, Raul Pompeia, Conan Doyle, Vick Baum […] esses caras “vieram pra cá” sem nunca ter colocados os pés aqui.
Eles pescavam isso nas enciclopédias. Aí, têm-se um escritor “local” como Ferreira de Castro, que passou aqui não sei quantos anos e consegue descrever um tigre no lugar de uma onça. Só para citar um caso bem escabroso. Ou seja: os que estudavam as enciclopédias tinham mais conhecimento que quem veio pra cá e não soube observar.
É aquilo que falei, os nativos e os viajantes veem a Amazônia de formas diferentes. Agora cada um tem o seu cabedal, suas informações e tudo aquilo que está guardado na sua cultura.
O poeta Paes Loureiro, uma das suas referências para a questão do imaginário, entende que a mitologia amazônica é tão rica quanto a mitologia greco-romana. Porém, faltam escritores capazes de apresentá-las em sua riqueza estética e artística.
ZP – Penso que ele tem razão. Não podemos esperar que outros venham realizar essa tarefa. Mas acho que a universidade vem fazendo isso desde uns quarenta anos para cá. É um processo lento. Fiz um levantamento dos livros de história da literatura. Ela começa em 1934 e se estende até agora. São noventa anos e o que se fez em todo nesse período que se possa chamar de história? Uns até que são livros belíssimos, mas não são livros de história. São livros nos quais são apresentados os autores que conversam entre eles. Assim, o leitor não consegue ver o fenômeno histórico com uma totalidade.
Mas, retornando à pesquisa que fiz sobre a história da literatura amazonense, que será publicada em livro pela AAL, posso afirmar que o primeiro livro que trata dessa questão é Existe uma literatura amazonense?, de Jorge Tufic, editado em 1982. Logo em seguida, em 1986, Socorro Santiago lançou Uma poética das águas. Como o Tufic não era da universidade, podemos dizer que tudo começa com Socorro Santiago. Esse livro é fantástico. É o primeiro exemplo de uma literatura que estuda a literatura. Não por acaso ela é irmã do Elson Farias, um dos escritores e poetas mais importantes da literatura brasileira feita no Amazonas.
Qual a sua expectativa para a recepção de Folia no Seringal?
ZP – É importantíssimo que o pessoal da universidade compre essa ideia. A gente é chamado para fazer palestras, participar de debates, mas o que a gente produz, que o que vai ficar, acaba esquecido. Esse é o meu segundo livro sobre o Clube da Madrugada, o primeiro é o Lira da Madrugada, uma coletânea de poemas musicados por Mauri Mrq. No Lira aconteceu assim: o pessoal gosta de ouvir a música do Mauri, mas não discute a poesia, que era o que eu queria suscitar, isso há dez anos atrás.
Eu queria, por exemplo, que fosse discutido se a poesia do Clube é modernista ou não. Essa é uma discussão que rende briga.
Aliás, o Elson Farias explica que escritores do Clube resgataram, inclusive, o soneto e a poesia metrificada que os modernistas da Semana de 22 tentaram ofuscar.
ZP – E por que isso? Porque isso era uma característica da terceira geração modernista que não era modernista coisa alguma. A terceira geração é a de 1945. Quem é o mais modernista dessa geração? Claro, João Cabral de Melo Neto, que se afastava do restante dessa turma. João Cabral, por exemplo, não escrevia soneto, mas ele era todo rigoroso do ponto de vista formal. Mas um formalismo que foi absorvido, também, pelos modernistas. Quando Drummond escreve; “Eu não quero ser moderno, agora eu quero ser eteno”, ele começa a escrever à maneira da geração de 45. Isto quer dizer que o Clube da Madrugada, em 1954, estava antenado não com o Modernismo de 1922, mas com o da Geração de 45.
No pós-madrugada, aparece a escritora Márcia Antonelli, que se destaca por meio sua forma de atuar e escrever sobre temas tidos como “marginais”. O que caracteriza uma autora fora da bolha do status quo literário?
ZP – A Márcia Antonelli pertence a uma tradição que remonta aos anos 1960. Aqui no Amazonas, o maior representante da literatura marginal ainda é o Simão Pessoa, que começou a publicar nos anos 1970. Os “marginais” são mesmo outsiders, uma folha fora de qualquer outra bolha. Pode ter certeza de que, mais cedo ou mais tarde, eles serão absorvidos pelo cânone, que não pode ignorar a boa literatura. A literatura do mundo está cheia de exemplos marginais, desde Cervantes até Paulo Leminski. Márcia Antonelli tem muito a mostrar ainda do seu talento.
Perfil do autor
Zemaria Pinto tem 28 livros publicados, em gêneros diversos: poesia, teatro, ficção infantojuvenil, didáticos e ensaios sobre literatura, além de três livros de contos adultos publicados no blog Palavra do Fingidor. Como organizador, publicou dois livros para a Academia Amazonense de Letras. Dramaturgo, tem seis peças encenadas e outras tantas inéditas. É especialista em Literatura Brasileira (1989) e mestre em Estudos Literários (2012), pela UFAM.
Este ano, lançou os livros Os que andam com os mortos (contos adultos) e Porque estudamos literatura (aula magna).
É membro da AAL, onde ocupa a cadeira 27, de Tavares Bastos, desde setembro de 2004. Membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), inaugurou, em fevereiro de 2016, a cadeira 59, de Nunes Pereira.